Lygia Fagundes Telles é uma importante romancista e contista brasileira, autora de livros consagrados, como Ciranda de Pedra (1954) e As meninas (1973). Em 1985, foi eleita a ocupar a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras e, em 2005, galardoada com o Prêmio Camões pela qualidade de seus romances e contos.
O conto selecionado para a prova de leitura do 1º bimestre, “Venha ver o pôr-do-sol”, foi publicado em 1970 pela extinta editora carioca Bloch, no livro Antes do Baile Verde.
Após a leitura, logo abaixo, você encontrará o link para uma releitura do conto.
ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que
avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e
ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali
por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga
infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão
azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de
estudante.
– Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
– Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que
idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele
chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
– Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece
nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas,
lembra?
– Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela,
guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?!
– Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.
– Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e
dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse
perfume. Então fiz mal?
– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí?
Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de
ferro, carcomido pela ferrugem.
– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os
fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou,
lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente.
Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas idéias. E
agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
– Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante
e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
– Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último
encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira,
só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
– Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de
te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse
possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive
espiando pelo buraco da fechadura…
– E você acha que eu iria?
– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei,
se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele,
aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou
sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos
ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão
astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a
rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar
inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
– Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
– Mas eu pago.
– Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é
de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda
comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
– Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que
tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas
fabulosas idéias vai me consertar a vida.
– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque,
meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja,
completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos
gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
– É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E
se vem um enterro? Não suporto enterros.
– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma
coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos
sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo…
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso
pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões
dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse
com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da
morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos
de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas
secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava
conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra
sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
– É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é
deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho
de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
– Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde
foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde,
está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um
crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
– Ele é tão rico assim?
– Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu
falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro…
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a
se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,
repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as
rugazinhas sumiram.
– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
– Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes
saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo
até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
– É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda
sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição
de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades – leu em
voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a
menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse,
apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da
fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as
raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem
o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não
me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim –
Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora.
– Mais alguns passos…
– Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para
atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
– A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para
frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se
vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas
vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos
os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já
estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por
aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
– Sua prima também?
– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas
tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus.
Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a
beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
– Vocês se amaram?
– Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem
importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
– Eu gostei de você, Ricardo.
– E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
– Esfriou, não? Vamos embora.
– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta
rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes
enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um
altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo.
Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre
os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas,
pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do
Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando
acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da
capelinha.
– Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
– Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas,
sinais da minha dedicação, certo?
– Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse
abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a
morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola.
Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro
paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
– E lá embaixo?
– Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó-
murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta
no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.
– A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
– Todas estas gavetas estão cheias?
– Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta
está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com
as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
– Vamos, Ricardo, vamos.
– Você está com medo?
– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu
um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi
umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e
vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora consigo mesmo,
doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver,
Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
– Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
– Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
– Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- Antes da chama se
apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.-
Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Deixou
cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada,
morreu há mais de cem anos! Seu menti…
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça
estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por
detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais
cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma,
ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro.
Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o
trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no
que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta.
Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol
mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
– Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu
a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre
as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. –
Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra…
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles,
reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
– Boa noite, Raquel.
– Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços por
entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria,
vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as
grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar
até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o,
apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e
amoleceu o corpo. Foi escorregando.
– Não, não…
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando
as duas folhas escancaradas.
– Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os
olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
– Não…
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve
silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de
repente, o grito medonho, inumano:
– NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes
aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais
remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o
portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento.
Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi
descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
Lygia Fagundes
Telles In:.Antes do Baile Verde. 1970.
RELEITURA DE VENHA VER O PÔR DO SOL